quinta-feira, 18 de novembro de 2010

o sabor da dor

O que a cansava era tudo. Era o vazio e a desilusão ao ser redor. Eram os seus dias, era a sua vida. Medíocre, vaga, hipócrita, comum.
Ela ia incansavelmente aos bares que freqüentava. Uma seqüência de noites mal dormidas, regadas a muita bebida, cigarro e falsas esperanças, falsos sorrisos derramados sob a lua. Cenário de boêmios, bêbados e almas vazias. Perdidos que fingiam ser felizes. Como ela.
Amigos poucos. Companheiros de bar muitos. Brindando uns com os outros seus copos cheios de amargor e rancor. Noites loucas de falsa alegria e encantamento que terminavam com ela já em casa, na frente do espelho, o rímel borrado escorrido pelas lágrimas, a cabeça girando pelo excesso de álcool e drogas, e algumas vezes o jato de vômito na privada do banheiro.
Mais uma noite comum.
E tudo o que ela queria era o abraço, o aconchego, alguém que a fizesse parar. Que a levasse a gostar das manhãs e acordar cedo para ir trabalhar.
Mas não. Sua falta de talento para ser feliz a condenara para sempre àquela vida mundana, aos excessos de álcool, aos beijos em bocas que mal conhecia, às idas ao banheiro dos bares para vomitar, chorar e ajeitar o cabelo, à carona de madrugada, que a deixava, trôpega e lenta, a tentar encaixar a chave na fechadura da porta do seu apartamento. Um vazio na boca amarga. Sozinha. Sem desespero. Apenas anestesiada. Apenas acostumada ao circuito destrutivo que entrou, desde muito pequena, quando seus pais perceberam horrorizados que ela cortava seus braços com facas de cozinha. Ela gostava da dor e condenara-se à ela.
Desde muito cedo soube que seria condenada aos porões do inferno. Sempre uma criança estranha, solitária, quieta. Sempre alheia às brincadeiras tolas das outras crianças, sempre lendo livros densos demais para sua pouca idade. Aos treze anos, Sartre era seu guru. E todo o desespero e a total inadequação ao mundo ao redor se apoderou daquela garota.
Não sabe porque se tornou assim. Simplesmente sentia-se assim desde a saída do útero materno. Sua mãe uma vez lhe contou que ela mamava muito pouco, por não suportar o contato materno desde bebê.
Quando cresceu afastou-se da família por não suportar conviver com o irmão corado e feliz. Encerrou-se num velho apartamento, antigo, e ali vive seu inferno solitariamente. Envolvendo-se sempre com um submundo de almas tão desprovidas de esperança quanto a dela.
Então, numa noite de Novembro, chegando mais uma vez bêbada e desiludida em casa, depois de vomitar toda o álcool que entornara, foi tomada de repente por uma possibilidade que a fazia senti-se melhor: morrer.
Uma sensação de alívio se apoderou dela. Sentiu-se mais tranqüila, quase feliz. O fim do circuito, o fim do viver insuportável, da inadequação, dos bares imundos, da falta de talento para ser feliz. Sentia-se calma, resolvida. E ainda era amiga da dor. Seria uma morte dolorosa, para que sentisse lentamente desapegar-se do próprio inferno que construiu para si. Imaginou indo encontrar-se com Deus. E ele fazendo-a parar, aconchegando-as nos braços como uma criança e acomodando-a ao seu lado numa nuvem branca, muito branca.
Escolheu a faca mais afiada que tinha e em pé, nua, frente ao espelho grande do banheiro, começou a fazer cortes em seu corpo. Os primeiros menores, superficiais, para em seguida transformarem-se em cortes profundos, sanguinolentos. A dor. Sua companheira. Com a dor tomando seu corpo, a dor da sua alma se apaziguava, era quase gentil. E aquilo lhe dava um certo prazer. A fazia sorrir, já sentindo as pernas fracas, a pressão arterial baixando e uma certa palidez bonita na sua cara no espelho.
Meticulosamente esculpiu muitos riscos de sangue cada vez mais fundos em seu corpo jovem, como uma obra de arte macabra. E à medida que sentia-se morrer, conheceu a felicidade de que tanto ouvira falar. E viu Deus. Um Deus jovem e brincalhão. Abraçou a morte sorrindo. Descansada. Plena. Enfim feliz.
 
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